segunda-feira, setembro 13, 2021

20 anos depois do 11 de setembro de 2001

 


Por Henrique A. Torreira de Mattos

 

Hoje, 11 de setembro de 2021 são relembrados os atentados terroristas contra os Estados Unidos da América, especificamente contra as torres gêmeas, pentágono e tentativa à Casa Branca.

Há 20 anos já era um entusiasta do Direito Internacional, iniciando por esta opção na vida acadêmica, além da prática privada em alguns momentos. Me lembro que após os atentados, não havia como entrar em uma sala de aula e não abordar o tema do terrorismo e sociedade internacional com um olhar mais atento e modificado em função do ocorrido, tentando estabelecer conexões jurídicas à política internacional traçada pela sociedade internacional após aquela data.

Nas aulas do Professor Carlos Roberto Husek, onde participava como assistente, os alunos discutiram à exaustão o papel e perspectivas da ONU, o Conselho de Segurança, a Sociedade Internacional, terrorismo, além de outros assuntos relacionados. Naquele momento, a ODIP já existia como grupo de estudos onde participava, sendo que tais assuntos também foram bem debatidos pelos professores Carlos Roberto Husek, Fabrício Felamingo, Paulo Brancher, Clarisse Laupman, Vera Garabini e Sandra Thomaz, ganhando mais tarde novos adeptos como os professores Lucas Souza, Igor Katz e Fernanda Miranda. Enfim, o assunto sempre esteva nas pautas das discussões desde então.

Após 20 anos desde aquele dia fatídico, hoje pela manhã (sábado) havia programado uma aula sobre arbitragem internacional em nosso curso de especialização em Direito Internacional da PUCSP/COGEAE, pois se tratava do cronograma regular. Apesar disso, senti a necessidade de abrir os trabalhos com os alunos relembrando os atentados de 11 de setembro de 2001, bem como chamar uma discussão sobre as mudanças ocorridas ao Direito Internacional e Relações Internacionais advindas desde então, contando com a grande ajuda do Professor Lucas.

O debate logo ganhou coro com os alunos. Um debate de altíssimo nível, coincidindo com o momento de retirada das tropas americanas do Afeganistão, que nos colocou uma questão basilar: Evoluímos nas relações internacionais, bem como no sistema jurídico internacional? Convido-os à reflexão.

quinta-feira, setembro 09, 2021

Sustentabilidade (Parte I)

 



Por Henrique A. Torreira de Mattos

 

 

Atualmente, o conceito de Sustentabilidade Empresarial vem sendo muito discutido, agora com o incremento do conceito ESG (Environmental, Social and Governance) uma vez que o mundo já vem sofrendo com a escassez de vários recursos naturais, tendo em vista que o modelo econômico adotado até então, crises diversas advindas da Pandemia, que  vem se mostrando cada vez mais ineficaz e prejudicial para a economia global.

O crescimento da economia mundial visto até os últimos anos teve início como a revolução industrial, iniciada na Inglaterra no século XIX, que fez com que a indústria da época, através do desenvolvimento tecnológico, pudesse dele se beneficiar para a melhoria de seus processos de produção, visando o crescimento industrial para atender não apenas o mercado doméstico ou regional, mas principalmente atuar no mercado mundial.

Dessa forma, iniciado com a revolução dos métodos de produção no setor industrial, houve o fomento do comércio dos produtos para escoar a produção e consequentemente também ocorreu o crescimento da atividade humana, o aumento da população mundial em função da qualidade de vida proporcionada, que por ter sido desenfreada e sem planejamento, hoje, vive-se o dilema que de alguma forma a melhoria da qualidade de vida do homem proporcionada no passado pela revolução industrial, é vista como o principal motivo dos problemas da falta de qualidade de vida que já sofremos no mundo atual, cujo questionamento se aprofundou durante a pandemia, e que se agravarão num futuro próximo, em função principalmente dos efeitos causados ao meio ambiente e à economia.

Durante muito tempo o ser humano viu no meio ambiente uma fonte ilimitada de recursos que hoje já não é real, já que a todo instante percebemos a limitação existente em função do mau uso feito destes recursos durante os vários anos de sua exploração.

A cultura capitalista do consumismo criou um ciclo desenfreado de consumo e descarte tão acelerado, que além da exploração do meio ambiente para extração dos insumos utilizados para uma produção acelerada, a mesma rapidez é notada com o descarte de produtos de volta ao meio ambiente, poluindo-o e tornando este ciclo cada vez mais prejudicial ao ser humano, tanto do ponto de vista dos impactos causados à saúde do homem, como em relação aos impactos à economia, pois além de faltar recursos para a produção, estes acabam se tronando mais caros, sem esquecer que atualmente as empresas também precisam investir muito capital em tecnologia necessária para reduzir o impacto ao meio ambiente, seja na própria produção, seja em programas de despoluição.

Além dos problemas ambientais destacados acima também se verifica o problema da pobreza mundial, cuja erradicação é uma das metas trazidas pela ONU. A pobreza mundial é causada em grande parte em função do desequilíbrio econômico entre os Estados, causado em parte pela política altamente competitiva criada pelas empresas multinacionais que visam o lucro cada vez maior para se manter no mercado, adotando políticas de diminuição de custos que afetam diretamente seus trabalhadores.

No caso das multinacionais, verifica-se que o capital gerado através das atividades desenvolvidas em determinado Estado, é em sua maioria devolvido à matriz, não havendo uma retenção do capital onde desenvolve suas atividades e consequentemente não favorece o desenvolvimento local na mesma proporção da riqueza que retira.

Um fator que também favorece esta competição cada vez mais acirrada é a globalização, já que em função deste fenômeno existe uma integração maior entre os mercados, sendo adotados modelos de gestão e modelos econômicos semelhantes, visando à manutenção da competitividade.[1]

Verifica-se, portanto, que as empresas para fazer parte do mercado global precisam se adequar às novas percepções, sendo atualmente obrigatório às empresas que querem continuar a atuar no mercado, adotarem os conceitos de sustentabilidade e responsabilidade social. Por conta disso, vem se desenvolvendo sobremaneira o conceito de sustentabilidade do setor empresarial.[2]

 

Crescimento econômico e Ecodesenvolvimento

 

Os dois conceitos, crescimento econômico e ecodesenvolvimento, sempre foram vistos como antagônicos, principalmente pelas organizações não-governamentais ambientais que sempre criticaram, de maneira radical, o modelo de desenvolvimento econômico empresarial, tendo em vista a degradação ambiental causada ao nosso planeta.

Atualmente, pontos de vista tidos como antagônicos começam a trilhar um caminho para a convergência, já que as empresas começam a se conscientizar de que precisam manter o seu crescimento sobre a ideia do uso consciente do meio ambiente, já que a economia deve continuar a crescer em função do aumento da população e suas necessidades de crescimento. Por outro lado, os ambientalistas também se conscientizaram de que a economia precisa crescer para a sociedade não entrar em colapso, evitando, assim, uma maior degradação ao meio ambiente.

Desta convergência tira-se o princípio norteador da sustentabilidade (triple botton line adiante tratado), cujo modelo ainda não foi definido ou se definido não quer dizer que seja o correto, tanto para a economia quanto para o meio ambiente. De todo modo, o Global Reporting Initiative orienta as empresas quanto aos critérios de sustentabilidade a serem seguidos.[3]

A Comissão Interministerial para Preservação da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento - CIMA (BRASIL, 1991), observa dois fatores relevantes sobre o crescimento econômico em contraposição à degradação do meio ambiente:

(i)              concentração progressiva da população em cidades, adensando o meio urbano e produzindo, em consequência, problemas ambientais e

(ii)            distribuição desigual do espaço, tanto no que diz respeito aos recursos naturais como nas atividades econômicas.

A solução do problema passa pela relação, menor produção para menor poluição, cujo efeito sem dúvida visa uma menor poluição do meio ambiente, porém não se sabe até que ponto esta correlação está correta ou seria sustentável.

Uma das questões que se discute sobre esta dicotomia é a pobreza, sendo que a geração de riqueza através do crescimento econômico seria o caminho para sua maior e melhor distribuição para erradicá-la.

Contudo, a partir do momento que se impõe uma diminuição da produção, consequentemente se verifica uma diminuição da geração de riqueza, fazendo com que entre em um círculo vicioso que deve ser melhor equacionado, cujo ponto de equilíbrio ainda não se alcançou. Entretanto, a ONU continua seguindo suas diretrizes de que o equilíbrio seja alcançado, tendo lançado a campanha Green Jobs (trabalho verde) que visa a busca de que as atividades empresariais sejam menos impactantes ao meio ambiente. 

A discussão desta questão deve ser multidisciplinar, pois envolve questões além de econômicas e ambientais, sociais e políticas, além de, obviamente, ter o respaldo do ponto de vista jurídico.

O desenvolvimento sustentável surge num momento de carência da humanidade por um equilíbrio nas relações econômicas, sociais e ambientais. Tal afirmativa é viável ao analisar o panorama econômico e social mundial, onde até o início da crise financeira de 2008, nunca houve tanta prosperidade econômica, ao mesmo tempo em que se agravou a miséria e a pobreza no planeta. Apesar de alguns países conseguirem se reestabelecer após este período, agora, a pandemia vem novamente nos mostrar as fragilidades dos métodos de desenvolvimento adotados pelo ser humano e empresas em geral.

Sem dúvida precisamos atrelar o conceito de desenvolvimento sustentável à proteção do meio ambiente, sendo inferida, inclusive, a sua origem através da premissa ambiental, no início da década de 70.

A contraposição de ideias relacionadas ao favorecimento da questão ambiental e econômica foram travadas pelo Clube de Roma[4], onde as duas visões contraditórias eram observadas e discutidas.

De um lado, os possibilistas culturais, também chamados tecno-cêntricos radicais, que entendem que os limites ambientais ao crescimento econômico são relativos diante da capacidade inventiva da humanidade, sendo o crescimento econômico, neste caso, positivo para eliminar as disparidades sociais, através de um custo ecológico que, apesar de inevitável, é considerado irrelevante diante das vantagens obtidas.

A outra visão, entendem os deterministas, também chamados de ecocêntricos radicais, que partem da premissa de que o meio ambiente apresenta limites absolutos ao crescimento econômico, estando a humanidade perto de um momento catastrófico de saturação.[5]

Para Ademar Romeiro, o ecodesenvolvimento almeja uma tenda, justamente para conciliar as duas posições acima descritas, visando direcionar ou nortear a atuação econômica para se chegar a um denominador comum capaz de garantir o crescimento da economia de uma maneira consciente e sustentável, levando em conta premissas como a eficiência econômica, desejo social e prudência ecológica.

No momento em que vivemos, a visão dos ecocêntricos vem ganhando força em fusão das patentes limitações naturais encontradas e previstas para o futuro, como é o caso da limitação de recursos naturais como água e energia.

 



[1] MUTO, Silvio. “Até que ponto a redução de verbas para projetos sócioambientais fere os princípios de sustentabilidade tão apregoados nos últimos anos?”. Revista Capital Aberto. Edição de março de 2009. Pág. 14.

[2] CORAL, Elisa; SELIG, Paulo Maurício; FILHO, Nelio Casrotto; ROSETTO, Carlos Ricardo. Modelo de planejamento estratégico para a sustentabilidade empresarial. 2002. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis – SC, 2002.

[3] Global Reporting Initiative (GRI) é associação pioneira no desenvolvimento de diretrizes universais relacionadas à sustentabilidade das empresas ao mais alto grau de aceitação. Fonte: WWW.globalreporting.org.

 

[4] Instituição fundada pelo industrial italiano Aurelio Peccei em 1968, que visava realizar um exame analítico dos problemas que afligiam a humanidade da época.

[5] ROMEIRO, Ademar R. “Desenvolvimento sustentável e mudança institucional: notas preliminares”. Instituto de Economia – Textos para Discussão, Texto 68, Unicamp,1999. Pág. 3.


quarta-feira, julho 28, 2021

Sociedade Internacional aberta e multifacetada

 


Por Henrique A. Torreira de Mattos


Decorre da globalização uma pluralidade de Direitos, que é assim entendida em função de uma fragmentação das soberanias. Esta fragmentação decorre desde as fontes do Direito até a sua regulação pelo Estado, pois nota-se que esta última vem sendo realizada por outros entes não estatais, que na visão de André-Jean Arnaud, dá origem a um pluralismo de racionalidades que promove uma flexibilização normativa.

Atualmente notamos que o Direito Internacional possui uma grande influência no Direito Interno. Tal fato é percebido pela vontade do Estado de participar cada vez mais intensamente no plano internacional e através da cooperação entre os Estados.

Como consequência, e visando manter uma ordem internacional, a sociedade internacional acaba por estabelecer algumas regras, que são padronizadas aos poucos, conforme o grau de evolução da integração internacional, de modo que os Estados participantes e interessados, por vontade própria direcionam suas políticas internas e consequentemente seu Direito ao encontro de tais premissas ou normas internacionais. 

Kelsen já havia se manifestado no sentido de que não existem fronteiras entre o Direito Interno e o Internacional.

Tal afirmação é facilmente verificada nos dias atuais através da análise das discussões existentes nos variados fóruns internacionais. Atualmente, tais fóruns não mais se preocupam em analisar ou tratar sobre temas, cujos reflexos ocorrem apenas no plano internacional. As discussões debatem temas internos de cada Estado, mas através de uma perspectiva internacional, ou seja, os Estados possuem problemas internos comuns e, além disso, os efeitos de sua atuação promovem consequências além de suas fronteiras. A análise realizada fortalece a hipótese da Teoria Transnormativa do Direito discorrida neste estudo.

Portanto, ao tratarem de problemas comuns, nada mais razoável do que discutir de uma forma padronizada os mesmos conceitos. Os fatos atuais nos mostram que a interdependência entre os Estados, mas principalmente entre seus povos, favorece uma padronização do raciocínio jurídico.

Conforme nos ensina o Professor Guido Soares:

“... existe um outro fenômeno digno de nota: no momento em que um ramo do direito interno torna-se internacional, perder relevância suas fontes internas, ganha ele métodos de hermenêutica diferentes dos vigentes no ordenamento interno, e as regras de sua vigência no espaço e no tempo são distintas daquelas das normas domésticas.” 

Portanto, a internacionalização do Direito é um fato percebido a olho nu, como um reflexo intenso do processo de globalização. A internacionalização do Direito depende da conjunção de fatores e normas do Direito Interno e do conhecimento aprofundado das regras e princípios do Direito Internacional, seja o Direito Internacional Público ou Privado, pois como vimos, as normas vigentes não são mais aquelas produzidas ou impostas pelo Estado, ou pela Sociedade Internacional, mas também aquelas cuja formação surge da Sociedade Civil Global, sendo posteriormente, em alguns casos, positivada pelo Estado.

sexta-feira, julho 16, 2021

Continuando os estudos da sociedade do nosso tempo: o negro

 


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC/SP e coordenador do ODIP – Ofician de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Na construção da sociedade brasileira, há velhos temas que de tempos em tempos voltam a nos atormentar, por ser tarefa não cumprida; como a integração dos negros, olvidando a enorme e histórica dívida que temos com a África, por participar e incentivar o comércio do atlântico, em tempos idos, que em termos de história, equivalem a ontem, e de cujo dia acordamos sem qualquer solução.

O branco escravizou o negro, e quando este se deu por libertado, por obra de concessão, passou a viver na periferia das grandes cidades, empurrado para os guetos, para os morros, para as casas de madeira, para os banhos de bacia de água tirada dos rios ou advindas da chuva, das sobras das feiras, e dos pequenos atos contra a propriedade privada, que continuaram e se multiplicar nas mãos do dominador.

A importância do tema não está no fato de que ressurgiu no horizonte político e acadêmico a questão dos direitos humanos e dos desfavorecidos, mas em algo mais concreto e sempre presente, a própria constituição da sociedade brasileira, feita de negros, pardos, amarelos, brancos e outros, cuja proporção de pretos é bem maior, em decorrência da miscigenação.

Em primeiro lugar, havemos de afastar o mito da democracia racial - e já o fizemos no artigo anterior - porquanto esta, efetivamente, nunca existiu. O que aconteceu é que conseguimos conviver uns com os outros, dentro de padrões bem definidos, entre privilegiados e excluídos, sendo que estes aceitaram a exclusão, sem discutir qualquer possibilidade de inclusão social. Nos dias de hoje, tentamos pela “quota” social outorgar aos negros algum caminho de inserção nas diversas áreas da atividade humana, mas ainda é uma concessão, e não uma efetiva conquista ou uma efetiva inclusão, que só aconteceria pelo ensino de qualidade ofertado pelo Estado e pela possibilidade de pleno emprego. E não seria condescendência do Estado, e sim, política pública necessária, esperada e administrativamente programada, em cumprimento de um dever constitucional de integração, de compartilhamento, de promoção do bem estar social.

A quem queremos enganar?

É possível construir uma nação que atue no mundo atual e na América do Sul, com efetiva liderança e compreensão dos problemas internacionais, com desconhecimento ou encobrimento de nossas origens e da nossa exata composição social?

Quem somos?

As nossas cidades são centralizadas, administrativa e economicamente, nas mãos de poucos – em geral brancos ou pretos esbranquiçados – com o domínio da segurança pública, também nas mãos destes poucos,  e as nossas instituições maiores, baseadas nos poderes da república, também, sem a participação eficiente, eficaz e estável de todos os componentes raciais, que continuam marginalizados.

Quem somos?

Simplesmente um poder europeu na América, cristalizado pelo tempo?

Abdias Nascimento[1], e dele nos servimos mais uma vez,  escreveu de forma clara sobre o papel do negro escravo para a história econômica do Brasil: “ Sem escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido. O africano escravizado construiu as fundações da nova sociedade com flexão e a quebra da sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia. Ele plantou, alimentou e colheu a riqueza material do país para o desfrute exclusivo da aristocracia branca. Tanto nas plantações de cana-de-açucar e café e na mineração, quanto das cidades, o africano incorporava as mãos e os pés das classes dirigentes que não se auto-degradavam em ocupações vis como aquelas do trabalho braçal. A nobilitante ocupação das classes dirigentes – os latifundiários, os comerciantes, os sacerdotes católicos – consistia no exercício da indolência, no cultivo da ignorância, do preconceito, e na prática da mais licenciosa luxúria. Durante séculos, por mais incrível que pareça, esse duro e ignóbil sistema escravocrata desfrutou a fama, sobretudo no estrangeiro de ser uma instituição benigna, de caráter humano. Ito graças ao colonialismo português que permanentemente adotou formas de comportamento muito específicas para disfarçar sua fundamental violência e crueldade. Um dos recursos utilizados nesse sentido foram a mentira e a dissimulação. A consciência do mundo guarda bem viva a lembrança do colonialista Portugal encobrindo a sua natureza racista e espoliadora através de estratagemas como a designação de “Província de Ultramar” para Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.” [2]

Fatos e história, em relação aos quais deve ser levado em conta a época e a divisão de poderes no mundo, as conquistas colonialistas, o direito do Estado promover tais conquistas, o poderio militar e econômico e outros fatores, que podem ser bem analisados para que não se incorra – vamos dizer de forma eufemística – na mesma incorreção, ou de forma crua, nos mesmos crimes. Mais do que isso, além da eventual reparação – é o que se tenta modernamente fazer – a efetiva correção, reabrindo os caminhos no território nacional para um progresso claro e inequívoco das relações sociais e das relações de poder. E tudo, irá beneficiar a todos nós, independente da raça, porquanto, o Brasil, sem dúvida, se tornará um país mais rico cultural e civilizadamente.

Não é possível que em pleno século XXI ainda patinamos neste assunto, envenenados pelo peso da história e das noções passadas de diferenças raciais e de gênese. Ninguém nasce para escravo ou para senhor, para mandar ou para obedecer, para ser rico ou para ser pobre, para o lazer ou para o labor; nasce-se simplesmente, e a sociedade impõe-nos as suas regras e os seus caminhos, que, diga-se, não são imutáveis.

É necessário ter força para crescer e sabedoria para agir, porque o mundo social é passível de transformação. Na sabedoria do continente negro, existem alguns ensinamentos, de alto conteúdo civilizatório: “nos costumes imemoriais africanos, a mais completa expressão de energia vital (porque o valor supremo da existência é a energia que conecta todos os seres do universo) é a existência intensa e generosa: a vida plena (...) As filosofias africanas comportam uma ética fundante. Elas não se baseiam em uma decisão divina que proíbe certas ações e as transforma em ´pecados´. Na praxe africana, o mal é o que prejudica os outros, o que ameaça a paz e a sobrevida do grupo (...) No pensamento ancestral africano, o Ser Supremo, Criador do Universo, permanece muito distante. Ele não se preocupa com a ordem moral, cujos guardiões são os ancestrais, que modelam condutas e eventualmente enviam punições aos descendentes que não os respeitam.[3]

Quem disse que a ordem do universo é aquela que aprendemos?

Quem somos, afinal, uma civilização do século XXI, eivada de conceitos que nos foram impingidos nos livros escolares e na propaganda oficial?

É preciso, urgentemente, mudar, integrar, consolidar, cooperar, incorporar, compreender, assimilar, compor, constituir, tornar o Brasil uno e não, apenas aceitar os brasis que absorvermos como irreversíveis. Depois, vamos ter com o funcionamento da economia, do poder e da distribuição de justiça. Sem esta base de incontestável transformação social, o edifício público tende a não resistir às intempéries dos acontecimentos.



[1] Poeta, escritor, ativista dos direitos civis e humanos, político, ator, escritor, ativista dos direitos civis e humanos, político, ator, teatrólogo, economista. Nascido em São Paulo, em 2011 e falecido no Rio de Janeiro em 2011, com obras escritas nas áreas mencionadas, e de cunho antropológico, histórico  e social.

[2] Nascimento, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro – Processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva,4ª. edição, 2016, p.59.

[3] Lopes, Nei e Simas, Luiz Antonio. Filosofias africanas.Editora Civilização brasileira, 1ª. edição, 2020, p. 19


sexta-feira, julho 09, 2021

DEBATER OU NÃO?

Por Fabrício Felamingo


Na semana passada, mencionamos que há meses preenchemos este espaço virtual com análises sobre a situação limite pela qual o Brasil passa, tendo em vista a calamidade do mais de meio milhão de mortos em razão do coronavírus. A pergunta então era como foi possível que tenhamos chegado a este ponto, incluindo aí não apenas tantos infectados e mortos mas também permitindo que a polarização política crescesse ao atual estágio de ódio que alguns setores nutrem contra os mais diferentes atores (políticos, imprensa, Poder Judiciário etc). E concluímos as linhas defendendo que deveríamos exercitar nossa empatia e tentar mostrar a realidade a tantos quantos possível, buscando evitar que as eleições do ano que vem permitissem novamente a eleição do atual estado de desgoverno.

No entanto, surge aí a questão sobre como debater política em tal clima de polarização, beligerância e pouca (nenhuma?) inteligência emocional. E mais, ao debater, não se estaria reforçando ou legitimando as teses esdrúxulas defendidas pelo (des)governo atual? Um exemplo: é legítimo discutir o processo eleitoral, visando formas de auditoria da votação e evitando fraudes. Mas, ao fazê-lo, corre-se o risco de dar guarida à tese de fraudes nas eleições presidenciais, a respeito das quais o atual mandatário alega ter provas e que as mostrará “se quiser”, como se fosse de seu campo discricionário guardar evidências de crimes e fraudes ocorridas.

Não debater, por outro lado, confere e reafirma a pobreza do debate político atual, em que memes de internet são utilizados como elementos argumentativos e vídeos curtos na redes sociais são verdadeiras “aulas magnas” de política. Qualquer coisa com mais do que 5 ou 10 linhas é “textão”, quando não “mimimi”, e o aprofundamento nos temas praticamente não ocorre. Mais: não debater pode até evitar conferir legitimidade às teses esdrúxulas (e que, não se duvide disso, têm sua finalidade muito bem compreendida por quem as difunde originariamente, passando pela tergiversação e indo até a má-fé) mas não demonstra respeito àqueles e àquelas que, não sendo os emissores originários de tais teses, as retransmitem por sincero acolhimento, tendo em vista a falta de conhecimento suficiente para rebatê-las. Os 58 milhões de votos à chapa vencedora no 2º turno em 2018 não correspondem a 58 milhões de cidadãos defensores de não vacinação, ou cloroquina, ou voto impresso (não confundir com eleições auditáveis, coisas distintas que são). E mesmo os que assim se posicionam, o fazem na maior parte das vezes baseados em sua boa-fé individual, pela crença sincera da melhor escolha.

Da mesma forma, os 47 milhões de votos da chapa perdedora não foram conferidos por eleitores desmemoriados do mensalão e afins mas, ao contrário, foram por muitos digitados nas urnas apesar desse e de outros eventos que desabonam, e muito, os governos anteriores. Mas os até então 28 anos de vida pública do atual presidente já sinalizavam de forma bastante convincente para parcela significativa desses 47 milhões de eleitores que mais do mesmo era, infelizmente, menos pior do a “novidade” que se prometia do outro lado. Isso estava visível aos demais 58 milhões de eleitores? Talvez estivesse acessível, mas a falta de discussão política menos apaixonada e mais racional com certeza foi determinante para o resultado atual. As inimagináveis mais de 520 mil mortes até agora no mínimo mostram que ninguém jamais poderia supor o quão ruim seriam as coisas e são um triste ponto de partida para que busquemos novas formas de discussão.

Enfim, é pela totalidade dos brasileiros, de um lado e outro, que devemos buscar o diálogo e o bom debate, olvidando-se daqueles que se locupletam hoje no poder. Caso contrário, corremos o risco da permanência do atual estado das coisas.


 

sexta-feira, junho 25, 2021

EMPATIA

 


Por Fabrício Felamingo

 

Há meses preenchemos este espaço virtual com análises sobre a situação limite pela qual o Brasil passa. Na verdade, nosso espaço deveria ser voltado às conversas sobre o direito internacional, mas a calamidade das atuais 500 mil mortes se sobrepõe a tudo. Não que o direito (internacional ou outros ramos) não tenha ligação possível de ser feita, mas o absurdo de vermos pessoas morrendo à espera das vacinas é entristecedor demais.

Como foi possível que tenhamos chegado a este ponto? Como, por outro lado, foi possível termos deixado a polarização política crescer a tal ponto que se identificam lados políticos a partir do remédio que uns e outros tomam ou deixam de tomar? Talvez já estivéssemos mergulhados nessa polarização sem nos dar conta disso?

Naturalmente, a resposta não é fácil tampouco está à mão. A quantidade de notícias falsas parece se espalhar em progressão geométrica e ser o ponto negativo da moderna facilidade do trânsito das informações entre as pessoas, algo muito bom que a tecnologia proporciona e que inexistia há 20 anos, e era menor há 10. Notícias falsas em si sempre existiram – Collor foi eleito também na esteira de “notícias” de que seria o antídoto aos “comunistas” que, eleitos, invadiriam casas para expropriar bens e “socializá-los”. Aliás, a caça aos comunistas que já foi fake news nos EUA, ainda o é no Brasil.

Espalhador de fake news ou crente nas fake news... quem é pior? A resposta talvez não ajude a resolver nosso problema, especialmente se considerarmos que, por vezes, confundem-se nas mesmas pessoas ambas as figuras. O que o Brasil precisa é de mais educação, todos sabemos (solução lenta) mas, também, mais empatia (solução inexistente, pelo visto). Empatia com a qual não contam nem mesmo os eleitores do Presidente da República, que entende serem merecedores de “andar de jegue” e não de avião seus críticos. Ou que xinga abertamente profissionais da imprensa. Ou que exorta a todos que tirem suas máscaras de proteção nestes tempos de pandemia. Ou que estimula o uso de medicamentos ineficazes. A lista é longa e com tópicos ainda piores do que os listados aqui. Não há na figura do mandatário máximo qualquer remoto traço de empatia com seus governados, exceto aos seus convertidos.

Se 500 mil mortos não significa o fundo do poço ainda, infelizmente, dado que mais mortes ocorrem todos os dias, por outro lado a lenta vacinação tende a fazer efeito aos poucos e, em 2022, imagina-se um ano melhor, ao menos por comparação com os catastróficos 2020 e 2021. Nesse contexto, uma reeleição parece ser possível, talvez provável. É desanimador imaginar esse quadro, mas ainda assim devemos exercitar nossa empatia e tentar, com diplomática insistência, mostrar a realidade a tantos quantos possível, buscando evitá-lo. É o que temos feito aqui, pedindo desculpas pela insistência monotemática.


sexta-feira, junho 18, 2021

Soft Law, Governança Corporativa e ESG

 


Por Henrique A. Torreira de Mattos

 

Soft Law ao ser tratado como um fenômeno do Direito, é vista de uma maneira sui generis, já que pela sua natureza, pode se manifestar tanto no Direito Internacional como em âmbito mais abrangente da regulação normativa, jurídica e não jurídica. Ao analisá-la no Direito Internacional a denominamos como Soft Law material ou substancial, pois refere-se às características substanciais das normas jurídicas, às obrigações por elas criadas, à sua precisão, ou bem às respectivas penalidades pelo descumprimento.

Desta forma, os tratados internacionais possuem características de Soft Law se tratarem o objeto de maneira principiológica ou com termos genéricos e sem precisão que impossibilite a identificação precisa de seu alcance. Caracteriza-se assim como uma recomendação com ausência de responsabilização e de mecanismos de coercibilidade.

Apesar do uso da expressão Soft Law, não podemos dizer simplesmente que se refere a um direito “fraco”. Mesmo sendo formada por princípios, sendo estes a sua característica marcante. Importante lembrar que ao lado de toda norma jurídica, existem princípios que norteiam o sentido da norma; ao mesmo tempo, todo direito conhece um certo grau de incerteza e ambiguidade. Estas características não podem ser usadas para desqualificar a aplicabilidade da Soft Law. Além disso, importante notar que ao contrário do que ocorre no âmbito nacional, no âmbito internacional não é possível garantir a satisfação total do direito material, tendo em vista a soberania estatal e a ausência de meios executórios absolutos.

Pela própria característica cooperativa e não subordinativa do Direito Internacional a garantia jurisdicional da defesa do direito material não é certa. Neste contexto, a soft Law seria um Direito mais leve em função de sua natureza.

No campo da Governança Corporativa que se encorpa mais por meio do conceito Environmental, Social e Governance (ESG), tendo em vista a possibilidade de normas não cogentes, podendo ser, inclusive, recepcionadas de outras jurisdições, podemos dizer que nos deparamos com uma normatividade relativa. Diante da pluralidade e complexidade de questões que podem surgir em função da combinação da necessidade da ação centrada e a complexidade dos problemas relacionados à questões institucionais e estratégicas das empresas e do mercado acionário, quanto aos interesses divergentes, faz-se com que surjam em abundância as soluções de compromisso por parte das empresas, do mercado e dos Estados para trabalhar em conjunto e a envidar esforços para enunciam princípios gerais neste sentido.

Quanto à sua forma a Soft Law, é a modalidade normativa que apresenta o interesse a ser alcançado e a flexibilidade desejada pelo Direito Internacional para sua transformação. Baseia-se na premissa de que pode criar Direito Internacional através de mecanismos leves ou genéricos, mas sem perder o seu sentido que está contido em seus princípios, em sua essência.

Em analogia às regras de Governança Corporativa, podemos inferir que, os chamados códigos de conduta ou códigos de melhores práticas, instrumentos estes que resultam das atividades empresarias e movimentações do mercado, nacional e internacional, aos quais pretendem atribuir um sentido de vinculante, por meio controle de conformidade (compliance).


Bibliografia:

VIRALLY, M. “La portée juridique des recommandations de organisations internationales” AFDI 1974;

DUPUY, Pierre Marie. “Droit Internacional Public”. Dalloz. 2006


quinta-feira, junho 10, 2021

Uma jarra de fel, com umas gotas de esperança


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC de São Paulo e coordenador da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado 



“A sociedade é como um navio; todos devem contribuir para a direção do leme” Henrik Ibsen (Um inimigo do Povo, ato 1)

 

Vivemos como sempre se viveu na História da humanidade; em época de transição. Cada época tem a sua transição e cada povo o seu momento, e o vive com todas as agruras e inseguranças, vislumbrando no horizonte algumas indefinições e um futuro desconhecido, próximo ou distante. A diferença dos dias atuais é apenas de grau e não de substância. Ressuscitam-se os poetas, os sonhadores, os santos, os revolucionários, e os psicóticos que governam, os sanguinários, os sedentes de poder, os que destroem a história e a cultura, adoradores de imagem, subservientes ao poder da hora, crentes apenas em suas próprias razões e que lideram povos por intermédio de grupos de apoio que dizem apenas e tão somente o que o dirigente maior quer ouvir. Vale a lembrança de que o “Rei quase sempre está nu”, embora se acredite cravejado de ouro, pelo simples fato de ser rei.

O que mudou? O mundo hodierno é tecnológico, com sociedades organizadas e sistemas de alcance do poder, em tese, democráticos e mais complexos, todavia as pessoas, principalmente quando em grupo, revelam o inconsciente das tribos primitivas e agem como se a tinta da chamada civilização não passasse de um colorido superficial que se desmancha no tempo, sem qualquer acréscimo, sem qualquer progresso social.

Por certo, comeríamos nossos inimigos ou aqueles que simplesmente pensam de modo diverso, se a fome batesse em nossas portas. Mudam-se os nomes dos dominadores e dos dominados, mas não se alteram os eventos na essência. Influenciam-nos, ainda, os totens, as palavras ditas teatralmente, os gestos de loucura, com punhos cerrados, o olhar fixando o nada sobre as cabeças, presos talvez de uma imagem embaçada de império e poderio, engando-se e engando a todos. Será que necessitaríamos da ordem dada aos rebanhos para nos dirigirmos a lugar nenhum?

Entretanto, há esperança e a há resposta vindas da própria heterogeneidade social. Em outras palavras, o que produz a automaticidade de ação do gado, também produz o desassossego, a eventual ebulição de novos caminhos e a mudança, e assim vamos a passos de tartaruga mudando alguns aspectos. Melhoramos um pouco, um mínimo, mas com isso alteramos algum elemento dessa composição complexa do viver social.

Tal se dá porque o poder de mando ao mesmo tempo que muda o meio em que acontece, também sofre influência, e por vezes, se vê na contingência de proceder a alguma transformação. 

Os Bonapartes, Hitlers, Mussolines, Maduros, Kim Jong - Ils, e outros aparecem e desabam, e novo ciclo se forma na espiral da política e da vida, com os mesmos espíritos, em nomes diferentes, mas com alguma sensível mudança, em face de uma sociedade cada vez mais multifacetada e atuante.

André-Jean Arnaud, explicita: “Isso não quer dizer que os tomadores das decisões políticas nunca tenham, anteriormente, enfrentado oposição, nunca tenham precisado ceder a reivindicações. (...) Pode mesmo ocorrer  que o tomador de decisão faça integrar, de modo próprio, a opinião pública, na elaboração de suas políticas; mas também que o processo seja o de submeter ao tomador de decisão as tendências da opinião pública; certos autores chegam até mesmo considerar casos em que a opinião pública é simplesmente construída de fora – aquilo que os colegas americanos não hesitam em chamar de ´opinion-making process´, em referência ao processo de tomada decisão, o ´decision-making process´. Quanto às relações entre os tomadores de decisões e os grupos de interesses, é possível constatar a ocorrência de uma virada. Esta última sobreveio, em grande parte, em consequência das desregulações consecutivas ao processo de globalização, assim como das reivindicações sistemáticas da base, sobre questões relativas a temas fundamentais como o mio ambiente, os direitos humanos, e a democracia.(...) Pode-se observar, igualmente, que, entre os atores em jogo na globalização, a sociedade civil ocupava apenas o quinto lugar, depois dos detentores dos direitos de propriedade (os acionistas), as empresas e as organizações suscetíveis de se deslocalizar, os atores territorializados (trabalhadores, sindicatos, redes de PME, coletividades descentralizadas) e os centros de decisão pública (Estados, organizações internacionais). Um pouco mais tarde, entretanto, admitiu-se que, entre os agentes de mudança, a sociedade civil desempenhava um papel de grande importância, mesmo que essa expressão seja ao mesmo tempo imprecisa e ambígua, abrangendo de um lado movimentos bastante distintos segundo a sua natureza, e, do outro, de acordo com o vetor sobre o qual eles intervêm – esses novos atores, com efeito, agem em níveis bastante diferenciados.[1] E, mais adiante, o autor destaca a sociedade civil como ator integral, observando que a sociedade civil não aparece apenas como um conjunto de movimentos de reivindicações, “mas também como a expressão de uma verdadeira vontade de participação por parte dos cidadãos.[2]

Não temo dizer que essa participação é por meio do voto em eleições com regras previamente estabelecidas, e nas quais é possível defenestrar os que têm tendência à tirania e eleger os altruístas, benevolentes, condescendentes, equilibrados, administradores de pessoas e não só de bens e mercadorias.

Outra possibilidade é a grita, o protesto, a ocupação geográfica das ruas para exigência das mudanças necessárias, sem desforço físico, pois as armas devem ser afastadas e substituídas pela palavra e a ação condizente, no apelo à inteligência e ao espírito. No mundo globalizado, não há opressor que consiga por muito tempo esconder-se sob a capa da democracia.

Existem outros caminhos? Talvez! Não cremos. Apostamos que a história ensina e a sociedade muda seu perfil, e como os autoritários e despóticos sofrem de falta de imaginação e quase sempre revelam uma miopia social acentuada, a transformação – ainda que parcimoniosa – termina por acontecer. Sabemos que em conta-gotas, mas é o preço que pagamos para um desenvolvimento consciente. O gosto amargo do fel persiste, porém ao fim e ao cabo, sobra o doce licor do crescimento.



[1] Arnaud, André-Jean. Governar sem fronteiras. Lumen Juris Editora, 2007, p. 222/231.

[2] Ibidem, p. 231 


 

quarta-feira, junho 02, 2021

Direito Transnormativo

 



Por Henrique A. Torreira de Mattos


A Teoria da Trasnormatividade parte da premissa de que no mundo em que vivemos, onde existe uma interação sobremaneira do ponto de vista das relações econômicas, sociais e culturais, proporciona uma discussão entre governos, seja no âmbito local, nacional, regional ou global, de modo que as normas internacionais deixam de ser discutidas internacionalmente pura e simplesmente, sendo discutidas em diversos foros independentemente de fronteiras.[1]

Na década de 1950, Philip Jessup[2] abordava o tema com muita propriedade. Para ele as relações transnacionais entre os seres humanos produziam consequências transnacionais, não cabendo a justificativa da aplicação do Direito através das doutrinas monista e dualista. No seu entender, em situações como esta a transnormatividade ocorre entre a relação existente dos dois Direitos Internos, direcionados pelo Direito Internacional.

Neste âmbito, o Direito Internacional origina-se da relação entre dois Direitos Internos e não os cria, definição que na época era contrária ao pensamento corrente que de certa forma via no Direito Internacional uma via direcionadora do Direito Interno (escolas monista e dualista).

Neste ponto, sua teoria era contrária ao monismo e ao dualismo por dois fatores. O primeiro, se baseava na relação entre seres humanos, que de certa forma configurava o mesmo princípio formador do Direito Interno. O outro fator, em função de analisar a questão da perspectiva interna para a internacional.

Para Philippe Braillard[3], em estudo realizado sobre a sociedade transnacional, este  a definiu como um sistema de interação, num domínio particular, entre atores sociais pertencentes a sistemas nacionais diferentes, visualizando que no interior de cada sistema nacional, as interações são decididas por elites não-governamentais e continuadas diretamente pelas forças sociais, econômicas e políticas nas sociedades de que fazem parte.

Diante desta explicação pode ser inferido que entre o Direito Internacional e o Direito Interno existe uma relação baseada em três pilares (internacional, global e interno) que caracterizam uma relação transnormativa.

O primeiro pilar acima citado, o internacional, representa uma tendência Estatal normativa internacional que visa a criação de determinada norma. O segundo, ou seja, o pilar global, representa o foro de discussão da sociedade civil internacional com exceção dos Estados, e por fim, o pilar local, representa a sociedade civil interna que promove a manutenção da conduta discutida nos foros internacionais.

Atualmente, a Teoria da Transnormatividade vem criando situações onde a transposição de um direito por outro, proporciona efeitos mais ágeis para amparar a globalização. Em muitas situações a cópia do direito alienígena, visando uma adequação interna para se preparar ao mundo global é importante e com certeza fomentou, e ainda fomenta, uma maior interação entre os Estados.

Um ponto importante a ser analisado é se, esta rápida adaptação transnormativa, seria sustentável, tendo em vista a distinção cultural, social e legislativa além fronteiras. Em outras palavras, antes da aplicação de uma norma transnacional deve haver um debate interno grande, a ponto de definir se a aplicabilidade desta norma alienígena é viável ou não, e é compatível ou não aos parâmetros internos. 

Para Wagner Menezes:

“Essa relação transnormativa se caracteriza por vários fatores de alocação de uma nova realidade internacional que, através de seus instrumentos normativos produzidos no plano internacional, dissolvem as fronteiras e possibilitam uma interpenetração de normas jurídicas entre o local e o global em um mesmo espaço de soberania e competência normativa. Elementos de fundamentação da construção normativa, como as fontes do direito, incluindo as soft law; o direito comunitário e seus mecanismos específicos para regulamentação intra-bloco; as regras de direitos humanos que passam de uma simples resolução e adotam cada vez o caráter de um ius cogens, um direito imperativo que deve ser respeitado e observado por todos os povos; as organizações internacionais, seus foros e sua atividade pseudo-Iegislativa; a transnacionalização da ordem econômica que envolve um número maior de temas e opera entre fronteiras, não só através do seu principal objeto, que é o capital, mas também por sujeitos operacionais, como as empresas transnacionais.”[4]

Diante das considerações acima, o que se nota é que a Teoria da Transnormatividade recebe críticas, pois pode colocar em risco o conceito clássico de soberania, uma vez que o Estado não possui mais, necessariamente, o poder criador da norma internacional do ponto de vista analisado pelas doutrinas monista e dualista. Ao contrário, o Estado passa a ser receptor de normas estrangeiras, que muitas vezes podem ter sido criadas por um outro Estado, organizações internacionais ou pela própria sociedade civil internacional.

Outro ponto a ser considerado, é o fato de que tais normas não necessariamente subordinam-se a hierarquias internas do Estado para produzirem seus efeitos, ou seja, não se trata de um ius cogens.

Nota-se, portanto, que além das barreiras geográficas, as normas ultrapassam também barreiras jurídicas, filosóficas e sociológicas, sendo criado um espaço global normativo.[5]

 

Bibliografia:

 

HELD, David; MCGREW, Anthony. “Prós e contras da globalização”. Tradução Vera Ribeiro. Editora Zahar, 2001;

JESSUP, Philip C. “Direito transnacional”. Tradução Carlos Ramires Pinheiro da Silva. Editora Fundo de Cultura, 1956;

BRAILLARD, Philíppe. “Teoria das relações intemacionais”. Tradução J. J. Pereira Gomes e A. Silva Dias. Fundação Calouste Gulbenkian, 1990;

MENEZES, Wagner. “Ordem Global e Transnormatividade”. Editora Unijui. 2005;

IANNI, Octávio. “A era do globalismo”. Editora Civilização Brasileira, 1996.



[1] HELD, David; MCGREW, Anthony. “Prós e contras da globalização”. Tradução Vera Ribeiro. Editora Zahar, 2001. Pág. 88.

[2] JESSUP, Philip C. “Direito transnacional”. Tradução Carlos Ramires Pinheiro da Silva. Editora Fundo de Cultura, 1956. Pág. 124.

[3] BRAILLARD, Philíppe. “Teoria das relações intemacionais”. Tradução J. J. Pereira Gomes e A. Silva Dias. Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. p. 275.

[4] MENEZES, Wagner. “Ordem Global e Transnormatividade”. Editora Unijui. 2005. Pág. 204.

[5] IANNI, Octávio. “A era do globalismo”. Editora Civilização Brasileira, 1996. Pág.178.